quarta-feira, maio 20, 2009

Carta para Minha Mãe

A senhora deve estar achando estranho esta carta, eu sei.
Posso imaginar sua euforia quando o carteiro lhe entregou. Depois teu estranhamento. Por que agora? Por que assim? Neste papel amarelado?

Temos nos falado tão pouco, nossas escassas conversas no telefone são frias, exatas em sua secura.
Hoje cai uma garoa fina sobre a cidade suja.
Há tanta pressa por todos os lados, tanta vontade de chegar em casa, de tomar um chá, de encontrar o jantar na mesa. Em cada estação do metrô lotado tantas vozes esperando serem caladas por um beijo.

Sabe mãe, hoje aconteceu uma coisa estranha comigo: eu não vi as pessoas como sempre vejo. Não vi nada além, fiquei invisível dentro do vagão que cheirava suor e cigarro. Agora imagina, eu que gosto tanto de observar, descobrir cada historia perdida nos vincos dos rostos cansados, não vi nada.
Esta carta assim as pressas é para te contar sobre o homem que me tornei.
O homem que você jamais conheceu. O engraçado é que não me lembro bem de como eu era antes de.

Aquele menino que passava horas preso no quarto perdido na literatura, vivendo vidas que jamais foram as dele, se perdeu.
Fui tão triste quando jovem e tão sonhador também, algumas lembranças são como fotografias fora de foco aqui dentro.
Fragmentos e talvez, veja bem, talvez tenha sido esses fragmentos que me fizeram ser quem eu sou.

Tinha você antes com teu cabelos cacheados, "permanente", você dizia.
Tinha a beleza de te esperar sentado no portão. O teu sorriso ao me ver: o teu garotinho com roupas gastas e pé no chão. A tua força, mesmo depois de um dia de fadiga, para fazer o jantar, para se sentar no sofá em paz enfim.

Tinha tuas mãos tão calejadas pela vida e eu não entendia como uma mulher tão jovem pudesse ter as mãos daquele jeito. Nenhuma mãe na rua tinhas as mãos como a sua. O teu sorriso tão cansado era quase um grito de socorro, um pedido de ajuda que eu só entendi mais tarde.

E tinha o pai, engraçado que nesses fragmentos não há imagens dele feliz. Só há um farrapo de homem, bêbado como um anjo caído. Os tapas em você, as louças quebradas, os jantares terminados em gritos em choro.
Ele também jovem cheio de amargura, as palavras duras, o jeito sério. Eu tinha pena de nós, mas mais ainda de você.

Mãe, eu não entendia que tipo de amor era esse que te prendia no caos. Porque você não gritava com ele? Não fugia para marte ou para a lua? Não saia sem rumo para longe? Não nos tirava dali?

Depois veio a raiva , o ódio de perceber que eu nunca seria feliz aí. E havia meu segredo tão bem escondido que ia crescendo como monstro e a vontade louca de ternura e afeto.

Vontade de coisas que eu nunca seria, nunca teria. Este desejo que ardia tão fundo...E a raiva de viver tudo isso, de estar ao teu lado, de te achar covarde, de odia-lo tanto.

Eu passei noites em claro elaborando um jeito de me livrar desta história.
Primeiro quis envenená-los, depois quis morrer jovem.
E só então decidi que viria embora.
Eu estava preso entende? Eu precisava de espaço para crescer e ganhar o mundo, de provar que eu seria diferente, que minha história seria outra.

Senão eu secaria.

Eu me sentia tão velho ainda que jovem demais.Eram tanto peso nos meus ombros frágeis de menino....
Eu não queria me tornar meu pai. Não queria me tornar você, tão cansada, triste e tão sozinha....

E assim, disso eu me lembro bem, fiz minhas malas e parti.

Você chorou tanto, pediu tanto mas eu não podia assistir aquilo eu precisava voar para longe.

E dentro da minha mala além das poucas roupas e sonhos eu trouxe comigo meu amor, meu ódio, minha dor para com você.

Esta cidade é dura minha mãe e constatei isso logo de início jovem e sozinho.
Muitas vezes com fome outras com frio e tantas outras com uma porção de poesia eu pensava "eis que é esta é a grande Babilônia, a prostituta".

E foi tão difícil mãe falar com você no telefone e lhe dizer que tudo estava bem sem estar. Eu estava amadurecendo afinal? E além disso, aqui eu pude ser mais claro.
O desejo que antes era pequeno, pecaminoso, crescera tanto que escorria pelas minhas mãos.

Me queimava em noites longas.
Então amei.
Amei branco, amei fundo, amei este rapaz como jamais amei alguém. E via no fundo de seus olhos de menino que eu tinha sido salvo enfim.
Mas como é amar quando só se conhece o amor cheio de feridas? Cheio de espinhos? O amor que consome e destrói? O amor do caos? ( fiz tanta coisa feia mãe).Como é a ternura quando só se conhece a amargura?

E assim mãe eu me entreguei ao caos, desisti deste amor.

E penso e tenho tanto medo. Talvez jamais eu consiga amar de novo, não quero mais machucar ninguém. Que as feridas sejam apenas minhas.
E mais uma vez eu fugi, ele não podia mais me ter nos ombros como um fardo, desaprendi há muito tempo atrás como ser feliz.
E foram noites de porres homéricos, de desrespeito, fui tão fácil, era como se eu tivesse vendido minha alma na esquina, para o diabo.
Eu me perdi.
Noites de carreiras brancas entrando pelas narinas e o alívio imediato.
Uma personagem.
Aquele garotinho cheio de ideias, e pudores,e culpa se transformou numa personagem de David Linch.
Tanta falta de não sei o quê, uma solidão tão grande, um desespero.
E eu só queria ser salvo, ser diferente.

Hoje eu sou "alguém" nesta grande Babilônia.

Sei que você enche o peito para falar de seu filho importante, o jornalista, o filho que deu certo na capital.
Mas mãezinha foram tantos os naufrágios, tamanha merda, uma cova atrás da outra e outra e outra que eu desapareci.
Sequei na estrada da vida.

O que me falta querida mãe? Além de seu café quente? De suas mãos cansadas?

Fui julgado severamente pelos meus atos, Sou apenas o que dizem que sou.
Nada mais.

Quando terminar de ler esta carta mãezinha eu lhe peço com a fé que te resta, peça para teu Deus olhar por mim.
Para que ele não me dê as costas como eu fiz com quase tudo na vida.

Te beijo minha mãe.

P.s Se for possível peça para Deus para que ele cuide também de minhas irmãs queridas. Que ele encha meu coração de paz. Que eu possa amar meu pai assim puro. Que ELE cuide de meu rapaz perdido, que sua vida seja doce e clara.
Peça pelos meus amigos que prezo. E que ainda se der, que ele mande um anjo esta noite para me dizer dentro do meu ouvido que sim, eu ainda sou um bom menino.

Diga para ele mãezinha que eu só quero acordar em paz.

Um comentário:

Somnia Carvalho disse...

Ed estou sem palavras... estou sem palavras meu amigo porque voce me deixou muda calada... quanta coisa linda nessa carta... juro! nao sei o que dizer...

embora ela seja tão triste tão e tão imensamente profunda ela parece uma luz... ter essa consciencia e escrever isso Ed não é nada nada simples...

eu espero que voce fique puro que voce veja seu pai puro, que seu mundo se ilumine com um beijo da sua mae... te adoro! Se cuida!!!