terça-feira, abril 29, 2008

Cortado

Sinto a vida escorrendo entre meus dedos enquanto me olho no espelho trincado do banheiro.
Cortaram-me o álcool o pó a erva.
Entupiram-me de remédios controlados
Terapia, Ioga, Análise
Comida saudável
Cortaram-me a gordura
As noitadas
Os butecos
A festa acabou
Todo mundo saiu e fiquei sozinho no escuro.
Apenas taças vazias e baratas.
Cortaram-me o cigarro
A alegria
À vontade de me arrumar
Cortaram-me o ácido deixando pra trás o gosto amargo na boca do estômago.
Cortaram a energia, o gás o aquecedor
Meu cabelo, as barras da minha calça
As unhas.
Os amigos boêmios, a gasolina a mesada o salário
O aluguel e o mercado
Cortaram tudo
Antes que eu cortasse meus pulsos!

quinta-feira, abril 10, 2008

Ed. Ou: Ele me conhece

De uma sensibilidade sem norte, nem Sirius, sem limitação de limites, sem fronteiras, sem cálculos variáveis porque toda página vai sendo preenchida com o descuido de uma gramática nada normativa. Ele vira para mais outra folha em branco e não quer rascunho nenhum, não tem cuidado nem com os sujeitos e peca nos adjetivos descolocados. Vai caminhando pela rua, atravessa, atende o celular, espreita outra pessoa do outro lado da rua onde ele estava. Enxerga meio mal quem está do lado e jura que sabe mais do mundo que muita gente: está perdido como a grande maioria.
Enquanto puxa um cigarro amassado do bolso e faz uma piada e ri alto, pede um abraço com a cara de menino que só vai perder quando se encontrar novamente no espelho, quando a balada acabar, quando o banho estiver muito frio e a cama sem forro e a poeira criando um mundo no canto da parede. Ele cisma, teima e finge que não entendeu ainda qual era o final da piada: que adianta se ele ri mesmo assim?
Tem um toque firme quando é chamado à seriedade do toque. Ama e não saber por que, gosta dos outros e não finge por que, quer uma passagem carimbada só de ida para bem longe do planeta, inventando outro planeta e, no meio do caminho encontrou outro cigarro amassado no bolso, outro sorriso na carteira cheia de bilhete em guardanapo esquecidos, e resolve que melhor é ficar nesse mesmo, que ele ganhou a preço alto, cicatrizes fundas, escolhas desencontradas e o caminho vai se formando e deformando e transformando como o suco de limão com cerveja, como o beijo esquecido dentro do livro, como o filme de amor que ele esqueceu de assistir.

Por: Manoel Arantes

quarta-feira, abril 02, 2008

caixas

O mundo é pesado e cruel.
Não, não é isso.
É preciso voltar a ser barro
Se perder
É preciso perder a memória, a chave de casa, o rg.
É preciso esquecer quem eu fui.
Voltar
Para dentro do poço infinito que se tornou meu coração.
Olhar para dentro sem piscar, segurar a respiração.
Fazer com que viver deixe de ser tão dolorido.
O mundo todo dói em mim
E eu só penso em parar.
Hoje na rua, depois de mais uma sessão de análise eu caminhava sem olhar para lugar nenhum.
O som no fone de ouvido quase estourava meus tímpanos e eu não ouvia nada além.
Apenas os beatles gritando “strawberry fields forever”.
E a rua toda me pareceu irreal, eu me sentia um personagem desfocado pisando no chão macio.
Pensava no quarto apertado em que eu me transformei.
No trabalho que daria tirar caixa por caixa todas elas, empoeiradas, cheias de teias de aranhas e com segredos e dores obscuras.
Tirar uma por uma
Em passo de tartaruga, olhar cada foto, cada carta, cada telefonema perdido, cada guardanapo guardado com um pouco de boemia e poema.
Eu só pensava em voltar o mais rápido para dentro de mim.
Voltar a ser barro e renascer novo.
É preciso cuidar das plantas do jardim, dos móveis da casa, mandar a cortina para lavanderia.
É preciso mais sol na sala, sobre os livros.
E o mundo a doer nas minhas costas.
É preciso um pouco mais de calma.
E uma dose suave de veneno.